segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

UMA GENEALOGIA DA LIBERTAÇÃO FEMININA


por Pedro Sena-Lino (Doutorando na FLUL, membro do projecto "Portuguese Women Writers 1500-1800")


A vida conventual feminina nos séculos XVI-XVIII tem sido revisitada como fenómeno, mas esta investigação de José Félix Duque (n. Óbidos, 1975) leva esse movimento mais longe e mais radicalmente. Três questões principais percorrem este duplo volume de vida e obra de Dona Beatriz da Silva, fundadora das Concepcionistas: oferecer uma biografia sustentada de Dona Beatriz, apoiada em documentação e consciente dos trabalhos anteriores; estudar o processo de construção de uma figura feminina no contexto da Igreja Católica, nas suas sucessivas transformações, alterações e rasuras; enquadrar a obra (não só a ordem, mas o feixe de ideias e concepções) de Beatriz da Silva, para além da mitificação ou do processo de beatificação a que foi posteriormente sujeita.
José Félix Duque inicia o seu trabalho pela clarificação de erros frequentes na história desta mulher portuguesa (Campo Maior, 1437 - Toledo, 1492): enfrentando o dilema (útil noutras reconfigurações) do seu nascimento, provando definitivamente o seu lugar de origem, e a sua nacionalidade portuguesa; nos pressupostos marcadamente feministas no século XV, da fundação da sua ordem; e, com uma perícia de estudo, sustentação e sistematização, no processo de beatificação prévia ao processo canónico de facto (que passa pelo fenómeno das “santas vivas”). Atenta José Félix Duque que este processo foi construído pela intelligentsia da hierarquia católica masculina, onde a mulher é repertório de virtudes de abnegação e obediência, alterando os factos da sua independência face a esta autoridade, e após a morte de D. Beatriz, as reescritas e revisões da estrutura independente, livre e original da sua ordem religiosa:
«O conjunto de características [da ordem religiosa que D. Beatriz propôs ao Papa] rasgava um futuro brilhante (…). A monicalização implicava o enquadramento jurídico do projecto, e logo, uma maior relevância social. Por outro lado, se este enquadramento traria maior dependência do poder religioso, com obediências, correcção disciplinar, direcção espiritual e assistência sacramental e litúrgica, todas nas mãos dos homens da Igreja, também ficariam salvaguardadas a autonomia e a liberdade das mulheres, às quais Dona Beatriz estava habituada, desejando-as também para as suas discípulas. (…) Em primeiro lugar, pediu que o cenóbio estivesse integrado na Ordem de Cister, escolhida no leque das grandes ordens monásticas existentes. Garantia, assim, uma útil flexibilidade jurídica do seu mosteiro (…). Em segundo lugar, pediu a autonomia religiosa por via do controlo jurídico, espiritual e penitencial. Solicitou que a abadessa pudesse elaborar estatututos e ordenações próprias para as novas ordens (…) e que a eleição da primeira abadessa e e das seguintes fosse feita pelas monjas. Tinha em atenção certos casos do seu tempo, nos quais a abadessa era imposta à comunidade por interesses sócio-políticos externos. (…) Pediu também a faculdade de poder escolher os confessores dos mosteiros.»

A ordem, que se iniciou independente, foi forçada a cair sob orientação franciscana, e sujeita a alterações nas suas constituições originais, normalizando o seu fulgor libertário feminino. Um dos aspectos que José Félix Duque destaca é o dos hábitos e símbolos da ordem, inovadores e feministas:
«Era grande a riqueza simbólica do hábito monástico inventado por Dona Beatriz da Silva (…). Solicitou que as suas monjas se vestissem com uma túnica e um escapulário brancos sobre as quais deveria assentar um manto azul celeste. Do háuito onesto de seglar que usava, passava a uma veste nova, festiva, santificante. (…) Eva era representada na iconografia religiosa com um corpo despido, exposto e pecaminoso. Era o arquétipo da decadência moral, o primeiro testemunho da afectação do corpo feminino pela corrupção e pela morte. (…) A Virgem Maria, pelo contrário, com frequência era representada de branco, com um manto azul, a cor da divindade na tradição da iconografia oriental. O hábito de Dona Beatriz apresentava precisamente estas características. Era uma espécie de novo corpo para as mulheres, um corpo já por si consagrado pelo voto de castidade, mas também revestido de brancura imaculada e associado à majestade das luzes cósmicas. Tratava-se de um corpo simbólico que especulava a glória da Criação, quando a mulher era pura e limpa de toda a mancha. (…) Naquela veste reclamava-se um lugar novo para o corpo feminino na ordem criacional. Na afirmação da semelhança com a Virgem exigia-se simbolicamente uma redefinição da própria humanidade das mulheres no Logos

Todas estas questões serão, ao longo do tempo, alteradas e mudadas pela estrutura hierárquica masculina, revelando o processo frequente na história das mulheres, o silenciamento de atitudes libertadoras para a mulher.
O que impressiona no trabalho de José Félix Duque é a sua cuidadosa sustentação em documentos e dados, bem com a atenção a todos os testemunhos da época, tendencialmente desvalorizados perante a construção posterior. Este estudo, trabalho efectuado durante dez anos sem apoios, alarga em Portugal o âmbito dos estudos feministas à narrativa monástica feminina, lendo nele, mesmo num século onde seria menos esperado, a raiz de um movimento libertador, porque assente na vontade de independência e igualdade da mulher.



Dona Beatriz da Silva – Vida e Obra de uma Mulher Forte
Porto: Labirinthus, 2008
encomendas para: joseruiteixeira@gmail.com

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

Recensão: Variações para além do sexo e género


Variações para além do sexo e género
Salomé Coelho

[Doutoranda em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra) e activista da UMAR.]


Publicada em Setembro de 2008, Variações sobre Sexo e Género é a mais recente antologia de textos que reflectem e incitam à reflexão sobre a contemporaneidade, mais concretamente as questões relativas à diferença, nomeadamente a “diferença” entre homens e mulheres. Com textos de Jane Flax, Joan Scott, Françoise Collin, Gisela Bock, Donna Haraway ou Judith Butler, este livro constitui um pensamento sobre o pensamento e discursos epistemológicos dos estudos feministas, de género, sobre as mulheres, etc. – um “meta-discursi-metodológico”, para utilizar a expressão de outra autora presente nesta antologia, Rosi Braidotti. À semelhança de outras (raras) antologias críticas do feminismo contemporâneo (por exemplo, Género, Identidade e Desejo. Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, organizada por Ana Gabriela Macedo), Variações sobre Sexo e Género constitui uma ferramenta teórica de inegável valor, por tornar acessível, em português, textos seminais dos estudos feministas e, sobretudo, pelo jogo de tradução da tradução que implica e impulsiona.
E é precisamente perante o que podíamos chamar de dupla tradução que assenta a relevância desta compilação. Por um lado, torna acessíveis textos que não são facilmente disponibilizados. Por outro lado, possibilita e convida à reflexão sobre as influências que as traduções podem ter no pensamento feminista português, visto que os conceitos são traduzidos pelas e nas especificidades nacionais. Porque urge “um trabalho de tradução e confrontação das (…) múltiplas diferenças” dos feminismos (Braidotti, 26), na senda da definição dos “valores que desejamos [intelectuais feministas] promover e transmitir” (idem, 20), esta compilação de textos teóricos, pela reflexão que promove, revela-se uma plataforma de diálogo de crucial importância.
Num jogo de fronteiras esbatidas – mas sempre presentes - , percorremos os textos desta antologia num vaivém teórico: do exterior para interior e daqui para o um novo exterior ou mesmo “entre o dentro e o fora dos estudos feministas”, como sugere Collin (p.9). E é deste jogo oscilante, variado e de variações, que se faz a leitura destes textos, essa “teia de questões e dúvidas” em que cada autora se refere às outras autoras, numa “possibilidade de percursos cruzados” (p.13).
“Nómadas” (Braidotti) do pensamento e no pensamento, o livro convida à viajem (variação?) pelo próprio “fazer do pensamento”, reflectindo, com Jane Flax, “acerca da forma como pensamos as relações de género” ou, mais ainda, como “não as pensamos” (p.103). Os textos são peremptórios quanto a esta urgência de pensar os feminismos e a forma como estes podem “estar imbuídos de relações de poder/conhecimento existentes” (Flax, 119). Como adiantado por Bock, é necessário reflectir sobre a forma como os feminismos, combatendo divisões binárias, recriam a “sua própria versão” das dicotomias: desde o binário sexo-género (bem presente nesta antologia), passando pela igualdade-diferença, até à polarização integração-autonomia (p.118).
Esta antologia conduz, assim, a um questionamento da forma como se perpetua a herança de categorias hegemónicas ou como se criam outras categorias “em nome do ethos feminista” (Braidotti, 29), abafador, não raras vezes, de variáveis como a “raça” ou a classe social.
É no sentido de denunciar esta exclusão conduzida pelos feminismos brancos e de classe média que Haraway escreve que “apesar das boas intenções, das declarações das autoras (…) a teoria feminista raramente inclui analiticamente e em conjunto raça, sexo/género e classe” (p.129).
E aqui voltamos ao duplo jogo da tradução. Se Haraway é, entre as autoras incluídas na antologia, a que mais se interessa pelo cruzamento de categorias e variáveis diversas, as restantes autoras abordam superficialmente esta questão. Ainda que não seja raro defender a necessidade deste cruzamento, na realidade não assistimos a uma efectiva reflexão sobre estas variáveis. Surgem nos textos apenas como referências que devem ser tidas em conta. Mas onde estão?
Numa antologia de sete textos, nenhum coube a autoras que não ocidentais. Nestes textos, a palavra parece ter sido traduzida, mas onde está a tradução das ideias para o concreto do livro? Por que não temos um texto dos feminismos do Sul? Ou, se a lonjura geográfica pode insinuar a lonjura de pensamento, onde estão textos de autoras espanholas, por exemplo?
Sabemos que escolher é sempre excluir, e apesar dos inegáveis contributos desta antologia – cuja pertinência quero sublinhar - , fica uma sensação de ausência, de falta de textos inovadores do pensamento feminista; de textos que tragam as sexualidades, transexualidade, intersexualidade ou asexualidade para o centro da reflexão epistemológica, porque a abalam profundamente; de textos que convoquem os pensamentos “abjectos” dos feminismos dissidentes. Fica a sensação de meras variações entre pólos conhecidos, sem ousadia para sair da circularidade dos pensamentos já mastigados. Ainda que não sejam obsoletas, há que ousar variações por outras ideias. Como propõe Butler, que prolifere a diversidade. Nesta caso, que prolifere a variedade de variações.

Ana Isabel Crespo, Ana Monteiro-Ferreira, Anabela Galhardo Couto, Isabel Cruz e Teresa Joaquim (org.) (2008) Variações sobre Sexo e Género, Lisboa: Livros Horizonte.
09 de Novembro de 08