Variações para além do sexo e género
Salomé Coelho
[Doutoranda em Estudos Feministas (Universidade de Coimbra) e activista da UMAR.]
Publicada em Setembro de 2008, Variações sobre Sexo e Género é a mais recente antologia de textos que reflectem e incitam à reflexão sobre a contemporaneidade, mais concretamente as questões relativas à diferença, nomeadamente a “diferença” entre homens e mulheres. Com textos de Jane Flax, Joan Scott, Françoise Collin, Gisela Bock, Donna Haraway ou Judith Butler, este livro constitui um pensamento sobre o pensamento e discursos epistemológicos dos estudos feministas, de género, sobre as mulheres, etc. – um “meta-discursi-metodológico”, para utilizar a expressão de outra autora presente nesta antologia, Rosi Braidotti. À semelhança de outras (raras) antologias críticas do feminismo contemporâneo (por exemplo, Género, Identidade e Desejo. Antologia Crítica do Feminismo Contemporâneo, organizada por Ana Gabriela Macedo), Variações sobre Sexo e Género constitui uma ferramenta teórica de inegável valor, por tornar acessível, em português, textos seminais dos estudos feministas e, sobretudo, pelo jogo de tradução da tradução que implica e impulsiona.
E é precisamente perante o que podíamos chamar de dupla tradução que assenta a relevância desta compilação. Por um lado, torna acessíveis textos que não são facilmente disponibilizados. Por outro lado, possibilita e convida à reflexão sobre as influências que as traduções podem ter no pensamento feminista português, visto que os conceitos são traduzidos pelas e nas especificidades nacionais. Porque urge “um trabalho de tradução e confrontação das (…) múltiplas diferenças” dos feminismos (Braidotti, 26), na senda da definição dos “valores que desejamos [intelectuais feministas] promover e transmitir” (idem, 20), esta compilação de textos teóricos, pela reflexão que promove, revela-se uma plataforma de diálogo de crucial importância.
Num jogo de fronteiras esbatidas – mas sempre presentes - , percorremos os textos desta antologia num vaivém teórico: do exterior para interior e daqui para o um novo exterior ou mesmo “entre o dentro e o fora dos estudos feministas”, como sugere Collin (p.9). E é deste jogo oscilante, variado e de variações, que se faz a leitura destes textos, essa “teia de questões e dúvidas” em que cada autora se refere às outras autoras, numa “possibilidade de percursos cruzados” (p.13).
“Nómadas” (Braidotti) do pensamento e no pensamento, o livro convida à viajem (variação?) pelo próprio “fazer do pensamento”, reflectindo, com Jane Flax, “acerca da forma como pensamos as relações de género” ou, mais ainda, como “não as pensamos” (p.103). Os textos são peremptórios quanto a esta urgência de pensar os feminismos e a forma como estes podem “estar imbuídos de relações de poder/conhecimento existentes” (Flax, 119). Como adiantado por Bock, é necessário reflectir sobre a forma como os feminismos, combatendo divisões binárias, recriam a “sua própria versão” das dicotomias: desde o binário sexo-género (bem presente nesta antologia), passando pela igualdade-diferença, até à polarização integração-autonomia (p.118).
Esta antologia conduz, assim, a um questionamento da forma como se perpetua a herança de categorias hegemónicas ou como se criam outras categorias “em nome do ethos feminista” (Braidotti, 29), abafador, não raras vezes, de variáveis como a “raça” ou a classe social.
É no sentido de denunciar esta exclusão conduzida pelos feminismos brancos e de classe média que Haraway escreve que “apesar das boas intenções, das declarações das autoras (…) a teoria feminista raramente inclui analiticamente e em conjunto raça, sexo/género e classe” (p.129).
E aqui voltamos ao duplo jogo da tradução. Se Haraway é, entre as autoras incluídas na antologia, a que mais se interessa pelo cruzamento de categorias e variáveis diversas, as restantes autoras abordam superficialmente esta questão. Ainda que não seja raro defender a necessidade deste cruzamento, na realidade não assistimos a uma efectiva reflexão sobre estas variáveis. Surgem nos textos apenas como referências que devem ser tidas em conta. Mas onde estão?
Numa antologia de sete textos, nenhum coube a autoras que não ocidentais. Nestes textos, a palavra parece ter sido traduzida, mas onde está a tradução das ideias para o concreto do livro? Por que não temos um texto dos feminismos do Sul? Ou, se a lonjura geográfica pode insinuar a lonjura de pensamento, onde estão textos de autoras espanholas, por exemplo?
Sabemos que escolher é sempre excluir, e apesar dos inegáveis contributos desta antologia – cuja pertinência quero sublinhar - , fica uma sensação de ausência, de falta de textos inovadores do pensamento feminista; de textos que tragam as sexualidades, transexualidade, intersexualidade ou asexualidade para o centro da reflexão epistemológica, porque a abalam profundamente; de textos que convoquem os pensamentos “abjectos” dos feminismos dissidentes. Fica a sensação de meras variações entre pólos conhecidos, sem ousadia para sair da circularidade dos pensamentos já mastigados. Ainda que não sejam obsoletas, há que ousar variações por outras ideias. Como propõe Butler, que prolifere a diversidade. Nesta caso, que prolifere a variedade de variações.
Ana Isabel Crespo, Ana Monteiro-Ferreira, Anabela Galhardo Couto, Isabel Cruz e Teresa Joaquim (org.) (2008) Variações sobre Sexo e Género, Lisboa: Livros Horizonte.
09 de Novembro de 08
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