terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Uma Lady Macbeth para cada ditador


Antje Windgassen (2008) Casadas com o poder. As mulheres dos ditadores. Tradução: Margarida Bacharel. Lisboa: Quetzal. (ed. Alemã: Verlag, 2002).



Adriana Bebiano
Estudos Feministas (Universidade de Coimbra)

A ideia de que as mulheres foram silenciadas pela história é consensualmente aceite. Decorrerá daqui que todo o estudo que dê maior visibilidade às mulheres deve ser saudado como contributo importante para contrariar este silenciamento histórico?
A pergunta ocorre-me a propósito de Casadas com o poder. As mulheres dos ditadores, de Antje Windgassen. Publicado originalmente na Alemanha em 2002 acaba de sair em tradução portuguesa, com a chancela de uma editora de prestígio entre nós. Parece ter por projecto retirar da sombra (relativa) as mulheres de Estaline, Mussolini, Franco, Mao, Ceausescu, Péron – esta excepcionalmente visível – Honecker, Tito e Milosevic. Na introdução afirma-se que elas teriam sido negligenciadas por biógrafos e historiadores, uma falha que esta série de biografias curtas pretende colmatar.
Ora, este desvelar do pretensamente oculto funciona, na verdade, como uma segunda ocultação, uma vez que em quase todos os casos Windgassen se limita a confirmar o cliché da mulher que incita um homem poderoso à corrupção e mesmo à crueldade. Muitas destas mulheres são figuradas à imagem de Lady Macbeth, figurações que o título do capítulo sobre Elena Ceaususcu – “A Condessa Drácula dos Cárpatos” – explicita, mas que estão também presentes nas outras figuras. Todas gostam de luxo, todas se casaram por ambição. Assim, é Doña Carmen que, na sombra, incita Franco a tomar o poder e a ser implacável com os seus opositores, Margot Honecker que comete os crimes mais horrendos da ex-RDA – nomeadamente o programa de adopção compulsiva dos filhos dos opositores do regime e a concepção dos campos de “reeducação” de jovens – e Jiang Qing a autêntica força motriz da Revolução Cultural Chinesa, com o seu cortejo de vítimas.
Que fique claro que não estou a defender que se deve proceder a um processo de branqueamento dos crimes pelos quais estas mulheres foram responsáveis ou cúmplices, ou a apresentá-las como simples marionetas nas mãos dos poderosos maridos. O que é mau neste livro, o que faz dele má história, é a simplificação atroz de todas as personagens: ignora-se a complexidade dos contextos históricos, e a história – feita de teias de relações e de variáveis – é reduzida à repetição dos clichés que podemos encontrar, por exemplo, nas telenovelas, num mundo a preto e branco e numa trama cujo desenlace – lido a posteriori – está escrito no início.
Assim, quando Elena Ceaucescu adere ao partido comunista em 1939, é porque via que estava ali a sua hipótese de ascensão ao poder – quando, de facto, em 1939 os comunistas se encontravam na clandestinidade, arriscavam a prisão, a tortura e a morte e não tinham condições de imaginar uma conquista do poder, pelo menos a curto prazo. De forma análoga, na Xangai de 1938 – enquanto os comunistas chineses eram perseguidos e massacrados – Jiang Qing “Já previa que os comunistas seriam a futura força na liderança” (109), o que a leva a decidir dar início à sua ascensão ao poder através da ligação amorosa com homens (cada vez mais) poderosos do partido.
Para além da sede de poder, a outra característica constante nestas mulheres – à excepção de Carmen Franco e de Rachele Mussolini – é a sua sexualidade sem freio e corruptora. Esta estreita ligação entre as mulheres poderosas e uma sexualidade excessiva faz parte da convenção dominante das representações do feminino na cultura Ocidental (Cleópatra é o exemplo que me ocorre). Como imaginar o poder no feminino que não seja um poder baseado no corpo como instrumento? E como desatar essa instrumentalização do corpo do pecado da luxúria, o pecado feminino por excelência? Daí também que, por contiguidade, todas elas gostem de luxo, roupas caras, sapatos extravagantes (relembrando a famosa colecção de sapatos de Imelda Marcos, essa metonímia para este excesso feminino de qualquer mulher casada com o poder). A divisão das mulheres em duas categorias fundadoras – a saber, a “esposa e mãe” e a “meretriz” – (pré)figura as mulheres de que aqui se fala. As mulheres de Mussolini, Rachele Mussolini e Clara Petacci, ilustram, na vida de um único homem, esta dicotomia do feminino. Mas as mães estão em menor número – as meretrizes são mais interessantes e ilustram melhor o lugar-comum do “poder como afrodisíaco”.
Se no caso da mulher de Péron, “Mãe Mítica ou Meretriz ávida de Poder?”, este livro se limita a reproduzir a mitografia em torno de Eva, com Jiang Qing esta figuração é mais indecorosa. O (historicamente) conhecido apetite sexual de Mao – com os concomitantes abusos e o desrespeito pelos direitos das mulheres – é atribuído, tout court, à mulher que o terá iniciado nesses prazeres, uma vez que terá sido nos braços dela que “Mao esqueceu rapidamente os conceitos morais que ainda pouco antes apregoava” (112).
Estamos perante um livro de divulgação histórica, ao qual, naturalmente, não se pode pedir um estudo aprofundado ou uma questionação bem fundada das narrativas dominantes. Mesmo a escassa bibliografia citada – duas a quatro fontes para cada caso, muitas delas simples entrevistas dadas pelas personagens a jornais – é aceitável no contexto deste género. O que é profundamente nocivo é a reprodução acrítica das representações do feminino que continuam a contribuir para uma demonização das mulheres – particularmente quando se encontram no poder, ou dele próximas.

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